segunda-feira, 24 de junho de 2013

Fascismo, o teu nome é multidão

O espírito do fascismo só incorpora na multidão; indivíduos têm fortes anticorpos 

Em certa manhã o Brasil acordou metamorfoseado em uma gigantesca multidão. Com suas milhares de bocas cantando e gritando, a multidão ruidosa lá fora promete nos salvar de nós mesmos. Mas identifico nela o protagonista de muitos pesadelos intranquilos: um monstro coletivo que dança pelas ruas durante o dia e, à meia-noite, emudece e veste uma farda.

O clima de ufanismo que tomou o País vem de uma constatação que virou slogan: “O povo está na rua!”. É comovente. Porém, a história mostra que momentos de revolta popular não precedem, necessariamente,  fases de ampliação de direitos e liberdades – em muitos casos ocorreu justamente o contrário.



Os especialistas convidados das emissoras de TV não hesitam em comparar a revolta brasileira à Primavera Árabe. É uma comparação reveladora. A insurreição popular nos países árabes buscava a ampliação de liberdades individuais e para tal derrubou vários governos autoritários. 

A queda dos despóticos, contudo, não se configurou em um ganho de liberdades e direitos. Egito e Tunísia caíram nas mãos de partidos islâmicos radicais. A Líbia enfrenta um conflito civil. 

A Primavera Árabe, nesses países, degenerou-se em um Inverno do Terror. Os especialistas da TV parecem espertos, mas têm memória curta ou são otimistas demais.Aliás, a história do século XX é um longo desfile de revoluções e mobilizações populares que terminaram em despotismos e carnificinas. 

O Brasil já esteve na passarela. É preciso lembrar que a sociedade civil chancelou o golpe militar de 1964 com gigantescas marchas pela família e a liberdade. As massas revoltosas lá fora têm memória curta. Ou são otimistas demais.  

O povo está nas ruas

A geração contra a ditadura; a geração "contra tudo que está aí"

Sim, eu sei que as ruas estão tomadas por pessoas legais que estão lutando “contra tudo o que está aí”. É gente comum que, sem pretensão de obter vantagens, marcha contra a corrupção, pela saúde, educação, etc. Isso é maravilhoso, não é mesmo?

O problema é que surgiram traços de fascismo aqui e acolá. Antes de ser uma ideologia, o fascismo é um sentimento forjado nas massas. Aliás, o termo deriva da palavra italiana fascio, que significa “feixe” e aponta para ideia de união e poder. O espírito do fascismo só ganha corpo na multidão, pois ela é a anulação do pluralismo de valores e objetivos dos indivíduos.  

Mas, antes, o que são as massas? O filósofo espanhol José Ortega Y Gasset (1883-1955) é o especialista.  Segundo o autor de “A Rebelião das Massas” (1930), elas são formadas pelas sobras de indivíduos antes autônomos e diferenciáveis que, uma vez desintegrados em uma multidão orgânica, se reduzem ao papel de receptáculos de vontades mascaradas.

Não por acaso, centenas de manifestantes que ocupam as ruas usam a mesma máscara, que os torna indiferenciáveis. Ortega Y Gasset alertou que o maior perigo consiste em outorgar a este monstro o mandato da sabedoria política apenas porque ele é coletivo.


Há perigos reais e imediatos. Por aqui a onda de protestos tinha caráter apartidário. Mas a coisa evoluiu para manifestações contra os partidos – o que é muito diferente de apartidário. Se nos seus primórdios era simplesmente independente de políticos, o movimento se tornou o receptáculo de um sentimento antiparlamentar – o que equivale a ser antidemocrático.

Nós podemos renovar o Congresso Nacional por meio de voto. O problema é que as multidões lá foram parecem expressar uma vontade mascarada de lutar “contra tudo”, o que resultaria no fim do Parlamento e demais instituições. O sentimento “contra tudo o que está ai” pode evoluir para o sentimento enganoso e perigoso que diz: “qualquer outra coisa serve”.

A França de 1789 é resultado dessa evolução de sentimentos vulgares do populacho. Os revolucionários franceses prometeram ao povo que começariam uma fase de emancipação política e social. Eles ganharam adesão da burguesia e do proletariado.

Graças às massas revoltosas nas ruas de Paris, o movimento revolucionário destronou o rei em nome da liberdade. Porém, logo após entregar o poder aos reicidas (que eram seus supostos libertadores), os franceses conheceram um reinado terror que ceifou milhares de vidas.

Robespierre perdeu a cabeça para a própria ideia

Foi Maximilien Robespierre (1758-1794), aclamado como “O Incorruptível”, quem inaugurou a fase de terror que não poupou nem a ele mesmo. Robespierre inventou o termo “inimigo do povo” e concebeu uma pena brutal contra os que tinham o azar de entrar na categoria: morte na guilhotina. Na lista da morte, “O Incorruptível” colocou muitos dos seus desafetos.

A revolta popular precedeu um período de irracionalidade e medo que só terminou com a execução do executor-chefe: Robespierre foi guilhotinado em 1794. O povo não teve tempo de comemorar: logo depois Napoleão Bonaparte (1769-1821) assumiu o posto, iniciando um novo período de terror, carnificina e despotismo. Em nome dos interesses do povo, é claro.

Robespierre está na esquina

No plenário do Senado Federal, o senador Cristovam Buarque sugeriu a abolição de todos os partidos políticos brasileiros. A proposta antidemocrática foi recebida com entusiasmo por muita gente que está nas ruas lutando, entre outras coisas, por mais democracia.

“Talvez eu radicalize aqui, mas acho que para atender o que o povo quer, nós precisaríamos de uma lei: estão abolidos todos os partidos”, afirmou o senador. Sintomaticamente, ele sugere que se novos partidos não servirem de solução teremos de inventar “qualquer outra coisa”.

Não acredito que o senador seja mal intencionado. Porém, o histórico dos revolucionários franceses mostra que boas intenções não garantem boas mudanças. A insatisfação “contra tudo o que está ai” é um convite à ideia de que podemos recomeçar a sociedade do zero.

Não podemos confiar em caras legais e bem intencionados


Os algozes da liberdade geralmente são os sujeitos bem intencionados que aparecem diante do povo, nos momentos de crise, convictos de que podem corrigir facilmente a realidade social, aplicando nela as belas abstrações e os nobres sentimentos que carregam consigo.

“Na medida em que liberdades e restrições variam com o tempo e as circunstâncias, e admitem infinitas modificações, não podem ser estabelecidas sob qualquer regra abstrata, e nada é tolo quanto discuti-las sobre esse princípio”, escreveu o parlamentar britânico Edmund Burke (1729-1797) em seu clássico “Reflexões sobre a Revolução na França” (1790).

Fé na criança mandona

Burke previu que o regime inaugurado pelos revolucionários franceses terminaria em despotismo e terror. Ele percebeu que insurreições populares não são garantia de liberdade futura, pois têm o potencial de abrir caminho para que revolucionários destruam as tradições e instituições nacionais do presente a fim de tentar recomeçar a sociedade do zero.

Apertar o botão “reset” nunca é uma possibilidade quando se trata de sociedades humanas, pois elas não são tabulas rasas prontas para receber passivamente novas instruções. A crença de que podemos reprogramar a sociedade, com a certeza de que a realidade social vá atender docilmente aos nossos desejos, é uma bobagem digna de uma criança mandona.    

Quando a realidade social não obedece aos seus desejos, a criança mandona faz birra!

Os destruidores das tradições e das instituições nacionais não surgem por acaso. Eles são a vanguarda das massas revoltosas que, ocupadas em marchar, não dispõem de tempo para refletir sobre seus próprios anseios. As massas revoltosas é que autorizam as crianças mandonas a desfazer as frágeis costuras institucionais que nos mantêm a salvo do despotismo.

Não devemos confiar em sujeitos bem intencionados, tampouco podemos nos dar ao luxo de depositar fé na inteligência das massas. Nos próximos dias aparecerão muitos “mocinhos” oferecendo soluções radicais para saciar os anseios da “multidão do bem” lá fora.

O que dizer dos caras legais que lutam contra “tudo que está aí”? Como bem notou Edmund Burke, “destroem mais do que são capazes de reconstruir”. Quando o conservador inglês chegou a essa conclusão, Robespierre ainda não havia perdido a cabeça na própria guilhotina.